22 de mar. de 2009

Por acaso perdi o caminho de casa

Quando olhei pela vidraça do trem, na escuridão do lá-fora-noite, vi dezenas de janelas brilhando feito vaga-lumes na floresta. Os quadradinhos de luz colados verticalmente nos prédios, alguns ainda se acendendo aos poucos, vão compondo um mosaico. Minha retina ajustou o foco, como fazem as câmeras fotográficas, e me perguntou, onde estou? Não deu tempo de responder, estava fora da minha rota e desci apressada pela porta do trem já apitando estridentemente que ia se fechar! Uma placa me diz: Estação Belém. Não creio que me afastei tanto assim! 

Na plataforma oposta, o trem no sentido oposto que me levaria de volta parece que me espera, como se estivesse solidário com meu tempo perdido. Tenho que ser ágil e aproveitar a deixa. Tudo em poucos minutos. A essa hora, o vagão que me leva de volta carrega pessoas absortas (vide-me). Com o coração descompassado me deixo abandonar com as costas no banco duro e escorrego até que as pernas se estiquem pelo meio do corredor já vazio. Minando adrenalina penso comigo "passei cinco estações do meu destino?" Fico com cara de tonta imaginando o que as pessoas, que me viram ainda há pouco, descendo esbaforida do trem, e entrando no trem oposto, pensaram sobre a minha manobra radical. Talvez, ninguém sequer tenha prestado atenção em mim, no meu "mico" e nem sei porque parei para pensar no que pensaram os outros... Acho que é porque foi engraçado. 

Tonta mesmo! É a segunda vez que faço isso nesse novo trajeto do trabalho para casa. Da República tenho que descer na segunda estação da linha vermelha, na Sé, e baldear para linha azul, com destino ao sul da cidade. Há que ficar atenta, as distâncias em São Paulo são consideráveis. Andamos todos cronometrados, escolhemos os vagões que nos deixam perto das escadas, perder um trem é perder 5 minutos... e sei que não dá tempo, mas teimo em abrir o livro da vez, "A má hora" de Garcia Marques. Em segundos me distraio, "ouvindo as cigarras que deixavam a tarde mais solitária e mais quente lá em Macondo", uma cidade fictícia na Colômbia, em meio aos personagens interessantes, abstraindo um "cheiro nauseabundo da vaca que morreu atolada na beira do rio", lá naquele fim de mundo dentro do livro. E como se ainda estivesse participando daquele capítulo me deparo com o cheiro nauseabundo do Rio Tietê, que indica estar do outro lado da cidade. 

Agora, consertado meu destino, me resta respirar fundo e voltar atrás. Observo uma moça devorando um Big Mac Donalds. Bastou-me virar a cabeça para ela devorar também as batatas fritas, nossa que fome! Alguns estão com suas caras pálidas de sono, outros pensando na "morte da bezerra" (é coisa que diz minha mãe quando se está distraído), aquele de lá cochilando de boca aberta e ao meu lado alguém lendo o jornal do dia que já envelheceu. E eu? Com que cara estou? 

É tarde. O trem vermelho correndo paralelamente ao meu, palmo a palmo disputa os trilhos e ecoa o barulho gostoso do "paque-paque-pá" ritimado, que se torna uma canção de ninar para quem está cansado depois de um dia paulistano. Me animo em pensar que posso escrever sobre essa aventura, até que patética. Enquanto separo as palavras que vou usar, uma a uma, no meu caderninho de anotações, as estações vão vencendo o tempo que volto atrás e me dá uma sensação de que perdi alguma coisa. É como se estivesse rodando um filme e tivesse que mudar o roteiro e alterar os destinos e refilmar as cenas. Como num flash, as pessoas ao meu lado eram umas e agora são outras. Lembrei-me do filme "Não por acaso", onde dois segundos mudaram tragicamente a vida dos personagens.

Estava eu, não por acaso, tentando chegar em casa e acabei viajando, por acaso, entre a aldeia Macondo, na Colômbia, e o bairro do Belém, em São Paulo. 

(Ada 22/3/2009)

Nenhum comentário: